outubro 05, 2011

Beatriz da Silva, fundadora pioneira e paladina de um cristianismo também de rosto feminino.

 

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Beatriz da Silva, fundadora pioneira e paladina de um cristianismo também de rosto feminino
Fundou-se há 500 anos a única ordem contemplativa portuguesa - Ordem da Imaculada Conceição - 500 anos

As ordens religiosas foram muitas vezes, contrariamente à opinião comum, espaços de iniciativa, de empreendedorismo e de liberdade para o universo feminino em contextos e tempos marcados por uma mentalidade social dominada pelos valores e pela liderança do universo masculino.

No desaguar da Idade Média e com o dealbar da Época Moderna acentuou-se uma tendência cultural e civilizacional tardo-medievial no Ocidente cristão que desconfiava do género feminino, que o desconsiderava em relação a uma visão que estabelecia a preponderância do homem e do seu valor considerado superior. Uma teologia do pecado original, conforme narra a história-metáfora do Génesis, que fazia recair na alegada fraqueza e fragilidade feminina, a responsabilidade toda pela queda que levaria à expulsão do primeiro casal humano do paraíso, tendeu a estabelecer um imaginário negativo, atingindo até foros de mitificação em torno da Mulher. Como bem demonstrou Régine Pernoud na sua obra sobre o Mito da Idade Média, a mulher medieval detinha mais espaço de protagonismo, de liderança para afirmar dignidade própria, prerrogativas que veio progressivamente a perder à medida que se caminhou em direção à emergência de um novo horizonte de compreensão do mundo e da sociedade na Modernidade.

Desde o século XV até sensivelmente ao Século das Luzes afirma-se na Europa uma cultura cada vez mais masculinizante que arreda a mulher da esfera pública, como se de uma espécie demoníaca perigosa se tratasse. As mulheres passam cada vez mais a ser confinadas na esfera privada, no lar e noutros espaços reservados, como nós procurámos demonstrar na obra escrita com Isabel Morán Cabanas sobre O Padre António Vieira e as Mulheres: O mito barroco do Universo Feminino.

Foi neste contexto marcado por uma moral social em que à mulher era retirado qualquer espaço de decisão, nem sequer na escolha de quem deveriam amar para constituir família cristã (direito de preferência reservado aos pais e em que os maridos detinham todo o poder sobre as suas esposas), que ocorre a chamada “Querela das Mulheres” na Modernidade. Embora tenha sido uma revolta de algum modo silenciosa, a Querela das Mulheres assumiu formas de reação da parte de mulheres da elite nobiliárquica com instrução e cultura capaz de oferecer olhar crítico sobre a realidade e sobre maneiras de pensar o seu próprio destino para além do statu quo que lhe era imposto. A vida monástica tornou-se, com efeito, um desses espaços possíveis de afirmação do desejo de liberdade e de inconformismo de muitas mulheres que não aceitavam o jugo imposto e não escolhido livremente, do elemento masculino.


Neste interessante contexto de transição moderna, se pode relevar a importância e o significado extraordinário de uma mulher forte de origem portuguesa que quis afrontar os cânones sociais e mentais ibéricos do tempo e encontrar um espaço de protagonismo e de liberdade interior.


Trata-se de D. Beatriz da Silva, nascida por volta do 1437 em Campo Maior, filha do nobre Rui Gomes da Silva que era Alcaide-Mor daquela vila portuguesa e conselheiro do Rei D. Duarte, tendo como mãe, D. Isabel de Menezes, filha natural de D. Pedro de Menezes, 1º Conde de Vila Real. A sua formação será muito influenciada pelos franciscanos com quem a família tinha relações privilegiadas, em particular com Frei Amador da Silva que veio a fundar o novo convento franciscano de Santo António de Campo Maior.

A celebração do casamento entre a portuguesa D. Isabel, filha de D. Isabel e do infante D. João e prima de D. Afonso V, com o Rei D. João II de Castela e Leão, conduz D. Beatriz à corte espanhola, fazendo parte do séquito real como dama de companhia da novel rainha, que passa a acompanhar nos trânsitos da corte castelhana. D. Beatriz ganha grande destaque na corte pela sua formosura, carácter forte e pela sua extraordinária cultura, sendo intensamente disputada por vários pretendentes, cujos pedidos de casamento recusa sempre. Ao tornar-se o centro das atenções, ganha o ciúme e a inveja da rainha que teria chegado a tal ponto de a encerrar num cofre durante alguns dias.


É neste ambiente de disputa e intriga cortesã e num contexto micro-social em que D. Beatriz toma contato com experiências de subjugação e violência sobre mulheres em situação matrimonial, que decide fazer voto de virgindade e seguir vida consagrada e de reclusão monástica no Mosteiro de São Domingos de Monjas Dominicanas em Toledo.

Com catorze anos de Idade passa a viver nesta comunidade monástica em regime de semi-reclusão, dedicando-se à oração, à solidariedade e também exercendo ações de mecenato. Rapidamente ganha fama de santidade e modelo de vida espiritual, atraindo a atenção quer da rainha Isabel, a Católica, filha do falecido rei D. João II e da sua mulher portuguesa do mesmo nome, que a visita e apoia no seu ideário.


Várias donzelas são atraídas pelo seu modelo de vida e formam pouco a pouco comunidade em torno de Beatriz, vindo a fundar uma nova experiência de vida espiritual e de caridade chamada à época de Beatério numa dependência dos Palácios de Galina concedida para o efeito pela Rainha de Castela.


É a partir deste primeiro núcleo - em que D. Beatriz, já com fama de santa, e as suas doze discípulas ganham ali o seu espaço de liberdade espiritual e prestígio social - que surge o empenho de formar um novo mosteiro feminino com regra própria. É esta a pré-história da Ordem da Imaculada Conceição.


A partir do 1489, sucedem-se vários pedidos apresentados junto da Santa Sé, com o patrocínio empenhado da poderosa Rainha D. Isabel, para que esta experiência de vida religiosa seja reconhecida e canonicamente institucionalizada.


D. Beatriz idealiza uma nova comunidade monástica, tendo por modelo a Virgem Maria, que teria concebido o Filho de Deus de maneira imaculada e livre das culpas originais do paraíso perdido que recaíam sobre ela enquanto mulher. Do ponto de vista litúrgico, espiritual, organizacional e jurídico planeia a constituição de um mosteiro que fará nascer uma ordem feminina com autonomia, com prerrogativas próprias e liberdade de escolhas, afrontando uma tendência de fazer depender as fundações monásticas femininas das regras e ordens masculinas.


Não deixa de ser significativo que Beatriz da Silva queira erguer como modelo espiritual a mulher perfeita, a mãe de Deus, para alicerce da sua espiritualidade e vida comunitária. A sua ordem constitui-se num tempo marcado dentro da Igreja pelo debate em torno da afirmação da verdade teológica da Imaculada Conceição - muito defendido pelos teólogos franciscanos contra uma resistência argumentativa liderada pelos intelectuais dominicanos - que dava a Maria, mãe de Cristo, um estatuto de superação plena da culpa feminina pela oferta do Redentor à humanidade decaída.


Beatriz alcança, em 1489, uma primeira aprovação papal para a sua comunidade monástica através da bula Inter Universa do papa Inocêncio VIII, com prerrogativas de autonomia em relação às Ordens Medicante quer a Dominicana quer a Franciscana, preferindo antes ficar inicialmente na alçada da regra de Cister que lhe dava mais liberdade de ação autónoma.


Não foi pacífica o perfil idealizado, por parte de Beatriz da Silva, de uma comunidade monástica de liderança feminina, cuja abadessa tivesse competências que lembram prerrogativas exercidas por outras grandes monjas medievais como Santa Hildegarda de Bingen. A fundadora portuguesa pretendia alicerçar em Toledo uma nova Ordem contemplativa que dependesse não de um Superior de uma Ordem Masculina, mas do Ordinário diocesano, o Bispo de Toledo e depois do Papa, em paridade com o que acontecia com outros superiores maiores masculinos. Queria ter liberdade de escolha dos conselheiros espirituais e confessores, ter toda a autoridade e decisão no espaço do seu mosteiro: controlo de entradas e saídas, definição de regimentos internos, poder oficiar uma liturgia própria inspirada na espiritualidade imaculista e concepcionista mariana em dias festivos e solenes próprios. O modelo de vida deveria ser a figura sagrada feminino da Imaculada Conceição e o espaço reservado e controlado sumamente pelas mulheres que ali consagravam a sua liberdade, corpo e alma, a Deus através de Sua mãe, Nossa Senhora, caminho modelar e inspirador da possibilidade de afirmação e perfeição cristã no feminino.


A negociação e definição do perfil da nova ordem sonhada por Beatriz foi morosa. Só anos depois da sua morte, ocorrida em 1492, a Ordem da Imaculada Conceição obteve a tão aguardada bula fundacional Ad Statum Prosperum no ano de 1511 com a assinatura do papa Júlio II, marcada pelo timbre imaculista da espiritualidade franciscana ligada à exaltação da conceição virginal de Nossa Senhora. A Ordem, cuja fundação sempre foi atribuída a Santa Beatriz da Silva, conheceu o grande período de expansão nos séculos XVI e XVII, em que multiplica cerca de uma centena de mosteiros pela Europa católica e América espanhola, onde é pioneira na fundação de mosteiros femininos.


Depois das vicissitudes que sofreram as ordens monásticas a partir do Iluminismo e com os processos persecutórios de carácter político e ideológico sofridos durante o século XIX e primeiras décadas do século XX marcado pela emergência do laicismo e do liberalismo, tem-se assistido nas últimas décadas a um novo florescimentos dos mosteiros da Ordem da Imaculada Conceição tanto na Europa como fora do velho continente cristão, nomeadamente na América Latina. Só no Brasil existem 18 mosteiros desta ordem. Em Portugal, existem duas comunidades refundadas no século XX. Uma em Campo Maior e outra perto de Viseu na Quinta do Viso.


O século XXI, que alguns teólogos anunciaram como o século do ressurgimento do misticismo e da vida espiritual, está a ser o da afirmação plena do lugar e do papel da mulher na sociedade como uma realidade cada vez mais visível, ultrapassando séculos de invisibilidade na esfera pública. Hoje, pois, o projeto que estrutura o ideário fundacional de Santa Beatriz que cria a única grande ordem contemplativa portuguesa e inspirará, mais tarde, outras fundações como a Congregação das Irmãs Concepcionistas ao Serviço dos Pobres, não pode deixar de ser relevado do ponto de vista cultural, social e espiritual no plano largo da ação dos grandes protagonistas da História Portuguesa na sua articulação com a história ibérica e internacional.


Uma mulher quis ser livre e realizou-se através da procura de uma liberdade maior que não prende o corpo, nem subjuga a vontade, mas liberta o espírito num plano superior à deriva rasteira dos dias e das sua múltiplas preocupações.


Tendo ganhado fama de mulher forte e santa ainda durante a sua vida, a Igreja viria a oficializar o reconhecimento público da sua santidade, depois de um longo processo canónico que já vinha do século XVII. O papa Paulo VI acabaria por elevá-la ao grau máximo de santidade, canonizando-a a 3 de Outubro de 1976 e apresentando-a à Igreja como modelo de vida cristã a seguir.


A Santa Sé não poderia, de facto, ficar indiferente a uma fundadora extraordinária que afrontou a mentalidade misógina do seu tempo e que iniciou uma ordem feminina peculiar e valorizadora da vida cristã no feminino pelos começos da Idade Moderna, continuando a dar frutos de pujança espiritual nos dias de hoje.


É, pois, de toda a pertinência e importância a realização de um grande congresso internacional em Fátima nos dias 14, 15 e 16 de Outubro próximo dedicado aos 500 anos da Ordem da Imaculada Conceição e à sua fundadora na relação com a espiritualidade marina e com o papel e influência da ordem em articulação com outras ordens religiosas na história de Portugal e da Europa.

José Eduardo Franco

Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias
da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

Fonte:José Eduardo Franco

Avé Maria Puríssima !

Santa Beatriz da Silva

As Irmãs a seguir

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